O paradoxo do dólar


A moeda norte-americana, quem diria, é hoje a aposta mais contrária que existe, não apenas no Brasil, como praticamente no mundo inteiro. A greenback, como é apelidada a divisa, vem perdendo nos últimos anos o status de um dos ativos mais desejados do planeta, passando a ser um dos mais desprezados. De repente, qualquer investidor passou a preferir ações, petróleo, cobre, dívidas de empresas e até moedas das mais exóticas do que tê-la em seu portfófio. O dólar, porém, ainda é a moeda global, a mais importante de todas e, como ficou demonstrado no auge da crise, é para ela que todos correm quando a incerteza e o medo crescem.De 2002 para cá, a divisa vem perdendo valor nos cinco continentes. O Dollar Index mede a sua força em relação a uma cesta de moedas fortes, de países que são grandes parceiros comerciais dos EUA. A cesta é composta por euro, franco suíço, libra inglesa, iene, dólar canadense e coroa sueca. O índice alcançou uma máxima de 121,02 pontos em julho de 2001 e depois despencou, até cravar uma mínima em março de 2008, em 70,698 pontos. Isso significa uma perda de 41,6 % do seu valor. Em relação às unidades de países emergentes, o processo recente de derrocada se iniciou um pouco mais tarde. No Brasil, pouco antes da eleição de Lula, a taxa de câmbio chegou a R$ 4, a partir do que começou a derreter, até alcançar R$ 1,5545 em agosto de 2008; um recuo de 61,25%.O caso específico da correspondência com o euro, que foi lançado em maio de 1999, valendo US$ 1,1750, é emblemático. A moeda única europeia enfrentou um processo de desvalorização logo nos primórdios de sua existência e chegou a ser cotada a US$ 0,823, em outubro de 2000 (queda de 30%). Após esta marca, o euro subiu consistentemente até valer US$ 1,6038 em 15 de julho do ano passado, registrando apreciação de 95% frente à unidade ianque. Em 2008, o dólar iniciou uma reação e o agravamento da crise financeira, em setembro, apressou a correção no processo de perda de poder da greenback, que teve uma expressiva recuperação de valor, tanto em relação ao euro, como frente à grande maioria das moedas. O período foi marcado pelo assombro de investidores com o caos financeiro e por temores econômicos generalizados. Consequentemente, instaurou-se uma corrida para o velho e bom dólar e para títulos do Tesouro dos EUA. Nesse breve contra-ataque da divisa americana, o euro recuou a US$ 1,2330, cotação que foi registrada em 28 de outubro (uma depreciação de 23% em cinco meses), depois do que avançou repentinamente até atingir US$ 1,4719 em dezembro (apreciação de 19% em dois meses). De dezembro até quatro de março de 2009, a divisa europeia cedeu novamente até o valor mínimo de US$ 1,2457. No começo de março, teve início um rali nas bolsas de ações mundiais, com a percepção predominante de que o fim da crise estaria próximo. Em junho, houve uma pequena correção desse rali, após o que os mercados acionários retomaram o viés altista. O sentimento otimista fez com que investidores começassem a abandonar o dólar outra vez e, na quinta-feira passada, o euro chegou a US$ 1,43 (apreciação de 14,79% em três meses).No Brasil, durante a fase de maior estresse, a paridade saltou de 1 US$ = R$ 1,56 para tocar R$ 2,62 por US$, em12 de maio. Ou seja, o dólar subiu 67,95% em sete meses e meio. De março para cá, alinhado à valorização das ações, o movimento de apreciação do real foi retomado com consistência, sendo que até o momento já houve um avanço de quase 25% da divisa brasileira, em cinco meses e meio.Tamanha volatilidade nos mercados de câmbio em todo o planeta sugere duas coisas. A primeira é que há muita gente se aproveitando dela. Basta olhar o balanço dos principais bancos de investimento americanos, que registraram ganhos portentosos no primeiro semestre de 2009 com especulações cambiais. É bom lembrar que apostas em moedas formam o maior mercado financeiro do mundo, com diversos segmentos. De acordo com o Bank for International Settlements(BIS), o volume diário transacionado nos mercados de taxas de câmbio em todo o planeta já ultrapassa hoje a casa dos US$ 4 trilhões (aproximadamente 6% do PIB global), crescendo ano a ano. A segunda conclusão que se pode tirar destas guinadas bruscas nos valores relativos das unidades monetárias dos países é que os fundamentos econômicos, que deveriam determinar a força ou fraqueza de cada divisa, estão cada vez mais frágeis e ininteligíveis. Isto significa que, uma vez mais, os mercados se afastam dos fundamentos, gerando volatilidade.Atualmente, o movimento dos diversos mercados financeiros mundiais vem seguindo, diariamente, um padrão que dificilmente é alterado. Em dias de bom humor, vende-se dólares e compra-se euros e demais divisas europeias. Por aqui, compra-se reais. Paralelamente, adquire-se ações nos cinco continentes e as bolsas sobem. O trem da alegria se completa com a compra de commodities, principalmente aquelas diretamente atreladas ao crescimento econômico, como o petróleo, e cujos contratos futuros oferecem maior liquidez, alavancagem e volatilidade. Inversamente, em dias de pessimismo, compra-se dólares e vende-se ações e commodities. O detalhe é que uma mesma notícia pode justificar tanto o bom, quanto o mau humor. Depende de como é interpretada. Por sua vez, a interpretação dos maiores players dos mercados comumente possui um viés pré-determinado, antes da chegada da notícia. Macroeconomicamente falando, a principal moeda do mundo não pode seguir se desvalorizando indefinidamente, sem consequências relevantes. As commodities tampouco continuarão galgando às alturas, sem limites de preços, sem que ocorram sérios desdobramentos na economia real. Os Estados Unidos ainda representam mais de 20% do PIB mundial. São os maiores parceiros comerciais do resto do mundo. Suas importações e exportações repercutem violentamente nos balanços de pagamentos de outros participantes de peso na cena global, como China, Japão e Brasil. Por serem precificadas na unidade norte-americana, as commodities ficam automaticamente mais baratas para os demais países que não os EUA, à medida que o dólar cai; tanto para produtores quanto para compradores. As cotações tendem a se elevar, então, por um sistema de compensação, já que a subida do preço (em dólares), é de certa forma anulada pela involução da greenback. Para os EUA, todavia, esta brincadeira pode acabar saindo bastante caro, literalmente. O resultado da combinação é um encarecimento exponencial das matérias primas para a maior potência planetária. Para eles, o aumento devido à subida das cotações (em número absoluto) se torna mais um entrave à recuperação econômica e realimenta a desvalorização do dólar, via inflação. Isto, somado ao aumento de liquidez promovido para combater a crise, pode desencadear um poderoso processo inflacionário logo no início da recuperação econômica. O ciclo vicioso, uma vez instaurado, necessitaria de medidas duras do Federal Reserve (o Banco Central americano) para ser interrompido. O procedimento básico é o aperto monetário, num nível que se assemelhe, talvez, ao promovido por Paul Volcker, então presidente do Fed, no começo dos anos 80. Como bem lembra o economista Hilário Muylaert, em meados da década de 70, após o abandono da conversibilidade ao ouro (em 1971), o dólar estava sob ataque especulativo, o que empurrou a inflação nos Estados Unidos a 13,5%, em 1981. Em junho daquele ano, Volcker elevou a taxa básica de juros do país a 20%, aplicando um choque monetário restritivo, e conseguindo atrair os capitais de volta aos EUA e ao dólar, renovando a confiança internacional na divisa. O mesmo Paul Volcker é hoje chefe da equipe de conselheiros econômicos do presidente Barack Obama.Nos mercados financeiros, as possibilidades são duas. Um caminho é a manutenção do padrão atual, com a continuidade da desvalorização do dólar, em conjunto com a alta das ações e das commodities, até quando a corda arrebentar novamente. A sustentar essas tendências, há ainda um outro arranjo subliminar, no qual as moedas de países emergentes, com taxas de câmbio flutuantes, se valorizam mais do que as principais unidades europeias, do que o iene e de que o yuan, já que a China fixa a paridade de sua divisa com a americana, impedindo a sua apreciação. Esta situação permitiu, de certa forma, e apesar da força do euro, que as duas principais economias do bloco, Alemanha e França, tenham sido as primeiras potências desenvolvidas a saírem da recessão no segundo trimestre de 2009, sendo que ambos os países vêm conseguindo reerguer gradualmente o volume de suas exportações. Alemanha e França também mantiveram uma posição bem mais conservadora no auge da crise, com pacotes de estímulos extremamente contidos, quando comparados aos executado por Estados Unidos, Reino Unido e China, principalmente. Se as apostas na sustentabilidade deste modelo prevalecerem, pode-se esperar que em breve, quem sabe até o primeiro trimestre do ano que vem, o euro busque as máximas de 2008 em relação ao dólar (US$ 1,6038), bem como no Brasil a paridade vá testar a mínima de R$ 1,55 por unidade americana. No segmento das commodities, ter-se-ia o petróleo subindo às nuvens, provavelmente superando os US$ 100 por barril (a máxima histórica foi de US$ 147 em julho de 2008). Já as ações, mantido esse compasso, continuariam se valorizando, sendo que as das principais economias emergentes, dentre as quais o Brasil, teriam tudo para estar testando suas pontuações mais altas já no começo de 2010 (a máxima do Ibovespa é de 73.920 em maio de 2008). A segunda hipótese para o desenrolar dos mercados financeiros nos próximos meses é que novos solavancos, em algumas das principais economias mundiais, convençam os grandes investidores de que o padrão em curso é insustentável. Eles então inverteriam suas apostas, retornando ao dólar, ou partindo com maior determinação para ativos como o ouro e a prata, por exemplo. Neste caso, a paridade euro x dólar poderia recuar para testar novamente a faixa entre US$ 1,25 e US$ 1,23 por euro. No Brasil, provavelmente, a moeda americana voltaria a valer mais de R$ 2. Nos mercados de ações, uma correção mais aguda seria observada, segundo o mega investidor Mark Mobius, de até 30%. Neste cenário, o petróleo e a maioria das matérias primas não teriam fôlego para segurar os recentes ganhos e retrocederiam, talvez em proporção semelhante às ações. Para diagnosticar qual dos dois caminhos (e apostas) está prevalecendo a cada momento, é fundamental acompanhar de perto todas as movimentações que envolvem o dólar. Na semana passada, apenas 3% dos analistas ou gestores consultados pela Bloomberg apostavam na moeda americana. Isso quer dizer que a esmagadora maioria dos apostadores colocava suas fichas contra a greenback. Em termos de mercados tão somente, ignorando-se quaisquer fundamentos, vale lembrar que tal desequilíbrio não costuma perdurar por muito tempo, já que, para um funcionamento harmonioso, é necessária sempre a presença de vendedores e compradores. Observando-se o Dollar Index, contudo, nota-se que o indicador rompeu o suporte em torno dos 78,5 pontos, em 31 de julho. Se o nível logo abaixo dos 78 pontos não segurar, a próxima linha de suporte é em 76, após o que as antigas mínimas, próximas a 70, ficariam expostas. A chave para se decifrar até quando será mantido o atual padrão (de tendências) nos diversos mercados financeiros pode estar aí. Cada um desses suportes possui grandes chances de ser um fundo para a mais importante moeda global. Ou seja, tecnicamente falando, uma reversão (mesmo que temporária) das tendências que configuram o atual padrão pode ser iniciada em qualquer um desses níveis.
Fonte: JC

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