1 – Os
fatos
Há muitos anos se discute neste país a
legitimidade do cálculo de juros compostos nas operações de empréstimos ou de
financiamentos. A alegação principal é que o Decreto 22.626, de 7 de abril de
1933, proibiria essa prática, o qual, no seu artigo 4º, estabelece: “É proibido
contar juros dos juros”. E é com base nesse texto, copiado literalmente do Art.
253 do Código Comercial Brasileiro de 1850, que muitos entendem que não se pode
adotar o critério de capitalização composta, ou juros compostos, ou juros
capitalizados, ou ainda juros sobre juros, caracterizado no mundo jurídico como
anatocismo. Antes de me estender sobre esse polêmico assunto, é muito
importante fazer algumas considerações sobre os conceitos básicos da matemática
financeira.
2 –
Conceitos básicos de matemática financeira e sua aplicação no mundo
Os conceitos de juros simples e compostos são
universais e dizem respeito ao processo de formação dos juros. No cálculo dos
juros simples, a taxa de juros incide sobre o capital inicial, e somente sobre
o capital inicial; no caso dos juros compostos, a taxa de juros incide sobre o
capital inicial e também sobre os juros que vão se acumulando periodicamente
(dia, mês, trimestre ou ano). Os juros resultantes da aplicação de qualquer um
desse dois critérios é o valor devido no final do período contratado, o qual
pode ser pago ou incorporado ao capital inicial para a formação de novos juros,
conforme vontade firmada entre as partes. Para melhor entendimento dessa
questão, vamos admitir o seguinte exemplo:
Calcular o montante de um empréstimo (ou de
uma aplicação) de R$ 1.000,00 . contratado a uma taxa de juros de 5% ao mês
para ser quitado de uma só vez no final de 4 meses.
O montante ou valor de resgate será de R$
1.200,00 se o critério de cálculo estabelecido entre as partes for o de juros
simples, e R$ 1.215,51, se o critério firmado for o de juros compostos. Este
modelo é chamado de pagamento único, em contrapartida aos modelos que envolvem
dois ou mais pagamentos. O critério de juros simples tem aplicação extremamente
limitada no mundo, utilizado somente para operações financeiras de curto prazo,
de até 12 meses, em que o capital inicial e os juros são pagos de uma só vez no
vencimento. A grande maioria dos países do mundo – toda Europa, o continente
asiático, os Estados Unidos e a maior parte da América do Sul - adota esse
critério por costume ou tradição. Nesses países, a taxa de juros é sempre
informada para o período de um ano; e como essa taxa deve estar escrita
no contrato, é chamada de taxa nominal. Assim, para um
empréstimo a ser pago no final de 3 meses, contratado a uma taxa de juros de
10% ao ano, a taxa para o período é de 2,5%, ou seja, 10% / 12 x 3. No Brasil,
a utilização desse critério no mercado financeiro é muito restrita; comumente é
usado por leigos e semi-leigos nos pequenos negócios, e, por essa razão,
chamado de “cálculo de padaria”. Em se tratando de empréstimos (ou
financiamentos) para quitação em duas ou mais prestações, iguais ou diferentes,
o mundo inteiro utiliza o critério de juros compostos ou de
capitalização composta; idêntico procedimento é adotado para todas as
modalidades de aplicações periódicas de recursos, como cadernetas de poupança,
fundos de investimentos em renda fixa, fundos de previdência e outros. Nos
casos de empréstimos ou financiamentos para pagamento em parcelas iguais, cujo
sistema de cálculo apenas no Brasil é conhecido por “Sistema Price” ou simplesmente
“Tabela Price”, o valor das prestações é obtido com base no critério de juros
compostos. E esse fato pode ser facilmente comprovado, visto que a fórmula
utilizada para o cálculo das prestações está demonstrada na maioria dos livros
de matemática financeira. Não tenho conhecimento de um único país no mundo que
adote juros simples para este tipo de cálculo.
3 – O
que é anatocismo
De acordo com ampla pesquisa que realizei,
anatocismo nada tem a ver o critério de formação dos juros a serem pagos (ou
recebidos) numa determinada data; ele consiste na cobrança de juros sobre
juros vencidos e não pagos, exatamente como conceituado no Novo Dicionário
Brasileiro. E como a legislação brasileira foi inspirada nas leis dos países
europeus como a França, Portugal, Alemanha, Itália, Espanha e Holanda, entendo
ser importante transcrever o conceito de anatocismo contido no Código Civil
português, que endossa plenamente o nosso entendimento:
“Art.
560 - Para que os juros vencidos produzam juros é necessária convenção
posterior ao vencimento; pode haver também juros de juros, a partir da
notificação judicial feita ao devedor para capitalizar os juros vencidos ou
proceder ao seu pagamento sob pena de capitalização. Só podem ser capitalizados
os juros correspondentes ao período mínimo de um ano.”
No Código Civil italiano encontramos
entendimento semelhante:
“Art.
1282 – Na falta de uso contrário, os juros vencidos só podem produzir juros do
dia do pedido judicial, ou por efeito de convenção posterior ao seu vencimento,
e sempre que trate de juros devidos pelo menos por 6 meses.” E no
Código Civil francês, conhecido também por Código de Napoleão, considerado pela
maioria dos grandes juristas como o pai de todos os códigos, o entendimento não
é diferente: “ Art. 1154 - Os juros vencidos dos capitais
podem produzir juros, quer por um pedido judicial, quer por uma convenção especial,
contando que, seja no pedido, seja na convenção, se trate de juros devidos,
pelo menos, por um ano inteiro.”
Com base nessas evidências podemos deduzir
que o Art. 253 do nosso Código Comercial editado em 1850, copiado literalmente
no Art. 4º do Decreto 22626 de 7 de abril de 1933, foi mal copiado ou mal
traduzido. Esse artigo tem a seguinte redação: “É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação
de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano.”
Observa-se claramente que primeira frase deveria ser “É proibido contar juros
dos juros vencidos”, ou ainda, “E proibido calcular juros sobre juros vencidos”.
4 –
Existência do anatocismo e a prática dos juros compostos
Entendido o anatocismo tal como foi
caracterizado, ele somente existiria se após o vencimento de uma operação o
credor cobrasse juros sobre os juros vencidos e não pagos. Vamos esclarecer
melhor essa questão com o exemplo de um empréstimo de R$ 1.000,00 para ser
quitado por R$ 1.225,00 no final de 9 meses. O anatocismo somente ocorreria se
após o vencimento, e num prazo inferior a 12 meses, o credor cobrasse juros
também sobre os juros de R$ 225,00. È importante também observar a seguinte
questão: o que muda para o devedor ou credor saber, que no exemplo mencionado,
a operação custa 2,5% ao mês se calculada a juros simples ou 2,28% se calculada
a juros compostos? Para efeitos legais, os dados relevantes são o valor do
empréstimo, o valor de resgate e o vencimento; entendo que o critério utilizado
para obtenção do valor dos juros é absolutamente secundário! Vamos mostrar que
nos casos de empréstimos ou financiamentos para pagamento em parcelas iguais o
anatocismo também não existe. Para melhor entendimento vamos considerar o
exemplo de um empréstimo de R$ 1.000,00 contratado a uma taxa de juros de 5% ao
mês, para ser quitado em 4 prestações mensais de R$ 282,01, sendo este valor
calculado com base no conceito de juros compostos, ou, como afirmam os
“entendidos”, obtido com a utilização da Tabela Price O quadro a seguir,
bastante conhecido, vai nos ajudar no esclarecimento dessa questão.
Através do quadro podemos verificar que o
valor dos juros devidos no primeiro mês, de R$ 50,00, igual a 5% sobre o saldo
devedor inicial de R$ 1.000,00, é integralmente pago; no mês seguinte a taxa de
juros incide somente sobre o saldo devedor de R$ 767,99 que nada contém de
juros, e assim sucessivamente. É fácil verificar que, ao se efetivar os
pagamentos de cada uma das prestações nos respectivos vencimentos, os juros
devidos são integralmente pagos, e portanto, nada restará de juros para o mês
seguinte. Dessa forma, comprova-se que não ocorre o anatocismo.
5 –
Considerações finais
É importante entender que o critério de juros
compostos não é bom e nem ruim: ele é absolutamente neutro em relação às
partes. Do ponto de vista matemático ele é perfeito, coerente e consistente
para qualquer taxa de juros e para qualquer prazo. Caso, por absurdo, fosse
proibido pela justiça brasileira, colocaríamos na marginalidade todos os planos
de aplicação de recursos em cadernetas de poupança, fundos de investimentos em
renda fixa, fundos de previdência, títulos de capitalização, fundo de garantia
por tempo de serviço (FGTS), e também, todos os contratos de empréstimos ou
financiamentos em prestações iguais ou diferentes. E não é só isso: decretaria
a nulidade de todos os livros de matemática financeira existentes e de todos
estudos econômicos e financeiros elaborados. Em suma, decretaria a extinção uma
ciência conhecida, respeitada e utilizada no mundo inteiro, o que, sem a menor
sombra de dúvida, colocaria a justiça brasileira numa situação extremamente
desconfortável perante o mundo. Mas, como já mencionamos, isso seria um
absurdo!
Fonte:
JDVS