O dólar no contexto cíclico


De repente, a eterna polêmica em relação ao valor do dólar se repaginou. Até poucas semanas atrás, as preocupações se calcavam na tendência de desvalorização da moeda norte-americana, e nos estragos impostos à indústria nacional pela escalada do real. A propagada ‘guerra cambial’, ou ‘tsunami monetário’, levou o governo a recorrentes intervenções nos mercados e a medidas regulatórias que tentavam conter e/ou reverter a trajetória. Industriais, economistas e políticos denunciavam um processo de desindustrialização. O próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, declarou que, não fosse pelas ações governamentais, a divisa brasileira teria se aproximado rapidamente da paridade com a greenback, causando danos irreparáveis à manufatura doméstica. Quando ficou claro que o sentido do movimento se invertera, e que a taxa de câmbio rumava celeremente para a fronteira psicológica de dois reais por dólar, no entanto, os temores de antes foram prontamente substituídos por outros, com as incertezas apenas se reforçando ao mudarem o foco. Essa alternância perceptiva descortina sutilezas da dinâmica econômica.

NA SEMANA PASSADA, o noticiário esteve repleto de economistas que ponderavam sobre a inversão de tendência no mercado de câmbio brasileiro. A maioria se demonstrava preocupada, com o foco voltado para a inflação. O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, foi um dos que se pronunciaram. Ele argumentou que a subida da divisa norte-americana eleva o custo de insumos importados, induzindo a indústria a reajustes em suas planilhas e em seus preços finais. Além disso, produtos estrangeiros ficam mais inacessíveis ao bolso brasileiro, o que seria ruim para a economia do País. No mesmo dia em que Loyola apareceu, o ministro Guido Mantega também falou. Na sua visão, contudo, o dólar alto beneficia a economia brasileira, porque dá mais competitividade aos produtos made in Brazil. O ministro enfatizou ainda que a desvalorização do real não preocupa o governo, e que nunca estabeleceu e nem vai estabelecer um parâmetro de preço para o dólar. “O dólar é flutuante, ele vai flutuar de acordo com o mercado”, salientou.
QUEM ESTÁ CERTO ENTÃO, Mantega ou Loyola? Pode-se afirmar que ambos foram precisos em suas respectivas avaliações. Cabe a observação, entretanto, de que o ministro da Fazenda se contradisse radicalmente em relação aos seus comentários anteriores, nos quais sublinhava a importância da atuação do governo nos mercados, teoricamente em defesa do parque industrial nacional. Foi ele quem cunhou a expressão “arsenal ilimitado” para se referir às armas de que dispunha a fim de conter o avanço do real. Não se pode dizer que Mantega estava errado, nem em relação à sua intenção, tampouco no que tange à estimativa de sua munição. Ao que parece, faltou lucubrar as potenciais conseqüências da utilização desse arsenal.
OCORRE QUE O MODELO DE crescimento econômico alicerçado no consumo doméstico, no qual o País vem se fiando desde a era Lula, dá nítidos sinais de esgotamento. Nos Estados Unidos e na Europa, esse padrão arrefeceu drasticamente a partir de 2007. Como ficou constatado, o Brasil e todo o bloco de países emergentes se encontravam em uma fase mais atrasada do ciclo econômico, ainda com lenha para queimar, ou seja, ainda com espaço para continuarem crescendo. Essa defasagem nos ciclos é que impediu, até aqui, um declínio mais pronunciado e generalizado da produção global. O fortalecimento das moedas emergentes, portanto, aconteceu a reboque deste contexto, que, diga-se de passagem, vem servindo muito bem ao sistema econômico mundial desde a última década. A princípio, na forma de reforçar a expansão e, nos últimos quatro anos, impedindo uma grande recessão planetária. Com o objetivo de combater os efeitos da crise internacional, governos de países emergentes abriram as torneiras a partir de 2008. Alguns, como a China, orientaram o grosso dos recursos a investimentos. Outros, como o Brasil, priorizaram o consumo interno. Em conjunto, essas políticas conseguiram a façanha de esticar, mas também acelerar os ciclos econômicos.
EM UM CENÁRIO DE aprofundamento da globalização, porém, a tendência natural é que os ciclos de diferentes países andem cada vez mais sincronizados. Isso explica a categorização por blocos, que vai juntando nações cujos ciclos vão se sobrepondo. A lógica evolutiva do processo globalizante é justamente que os percursos individuais de cada nação convirjam para um só, e que o mesmo ciclo econômico seja vivenciado em uníssono por todos. Para atender a esse alinhamento, havia duas possibilidades no pós-2008: que os países centrais se recuperassem enquanto os emergentes mantinham os altos padrões de consumo que vinham alcançando; ou que esse bloco estancasse, igualando assim o timing cíclico do Primeiro Mundo.  Caso os desequilíbrios nestas nações em desenvolvimento não sejam corrigidos, é de se supor que em breve elas também experimentem declínios consideráveis no nível  de atividade. Sem contar que no grupo emergente existem desvantagens estruturais que podem agravar o tombo. O consenso entre economistas é que a China, por  exemplo, precisa aumentar  a proporção do consumo na formação do seu Produto Interno Bruto (PIB), reduzindo a fatia gerada por investimentos, enquanto o Brasil necessita fazer o caminho oposto (diminuir o consumo e elevar investimentos).
O MINISTRO GUIDO MANTEGA dá como certo o reaquecimento da economia brasileira, a partir do continuísmo da adoção do que  se denomina medidas  anti-cíclicas, as quais se baseiam, pura e simplesmente, no estímulo ao consumo. Só que, a esta altura, esse rumo aproxima o País das agruras defrontadas pelo Primeiro Mundo. Mais prudente seria ajustar a rota, impedindo que o preço cobrado por essa insistência se avolume. É inevitável encarar a transição de uma economia pautada na ampliação do consumo para um modelo com maior ênfase no binômio poupança e investimento. O problema é que, ao empreender  essa guinada, os entraves estruturais brasileiros virão à tona, e manter o nível de crescimento econômico per seguido pelo governo Dilma se torna inviável no curto prazo. Isso, por sua vez, desarticula toda a estratégia política do Planalto. A crescente percepção de investidores privados sobre essa encruzilhada é um agravante e tanto, pois faz com que eles comecem a se abster do País. Fica mais fácil entender, então, que a subida do dólar não ocorre exclusivamente por causa da Grécia, como se tem d to. A situação é bem mai s complexa.
A TENDÊNCIA DE DESVALORIZAÇÃO do real reduz o preço de produtos brasileiros na comparação com rivais estrangeiros, apesar de elevá-lo domesticamente, por conta do encarecimento de insumos importados. Em contrapartida, quando a trajetória da moeda brasileira é de apreciação, o consumo interno é  favorecido, a inflação é inibida, mas a  competitividade da indústria nacional é prejudicada. Assim, qualquer que seja o curso da moeda, ele sempre acarretará benefícios e prejuízos. Por isso, tanto Mantega quanto Loyola estavam corretos em seus comentários. O certo no câmbio flutuante é que ele flutua, costumava dizer o ex-ministro Antônio Palocci. Ainda nos idos de 2006, o então par lamentar Delfim Netto aproveitou a deixa para emendar que no Brasil o câmbio flutuante afunda ou voa. Esse é o lado ruim desta modalidade, que, vista pelo seu lado bom, evidencia problemas e amortece choques na economia, propiciando maior margem para manobras. O que gera impactos negativos, portanto, seja para o lado que for a taxa de câmbio, é o excesso, ou o prolongamento indefinido da valorização ou desvalorização do real. E essa é a lógica de toda a economia.
A PERSISTÊNCIA DO GOVERNO brasileiro em um modelo de expansão ilimitada do consumo, no atual momento, implica em convencer a população a continuar gastando, apesar das evidências de que o endividamento atinge níveis preocupantes e de que o mercado de trabalho arrefece. A estratégia tende a impulsionar o dólar e, ao menos no curto prazo, a inflação. Ela açoda o ciclo econômico, podendo precipitar um baque mais traumático e duradouro. Já era para o País ter aprendido – os eleitores/consumidores principalmente – que reordenações estruturais precisam ser levadas a cabo, de preferência, em tempos de vacas gordas. A economia vai seguir cobrando.



Fonte: JC

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