Quem tem razão na tragédia grega?


Na definição, tragédia é um problema sem solução. As tragédias de Édipo, Antígona ou Prometeu têm uma mesma estrutura: seres humanos divididos, dilacerados entre sentimentos conflitantes, incapazes de deter a marcha inexorável de um destino cujo resultado é o sofrimento, a dor e a morte. Gregos antigos costumavam imolar uma cabra na apresentação desses eventos teatrais que, em grego, foram batizados como “cabra cantante”, ou tragédia.

Hoje, a cabra vai cantar na Grécia.

O governo grego afirma que não pagará o 1,6 bilhão de euros da parcela da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que vence hoje. O Banco Central Europeu (BCE) anunciou que não garante as linhas de crédito de emergência que têm sustentado o sistema financeiro grego além do prazo de hoje. No comunicado emitido ontem, a “troika” – grupo de credores formado por FMI, BCE e Comissão Europeia  – deixou claro o fracasso nas negociações para liberar a parcela de 7,2 bilhões de euros do último pacote de ajuda à Grécia. Os gregos estão divididos em relação ao plebiscito convocado para o próximo domingo. Mas nem a vitória do "sim" à permanência no euro será capaz de evitar a tragédia, como escrevi em meu último post. Para todos efeitos, acabou. Fim. A cabra vai cantar. De quem é a culpa? Eis uma pergunta essencial para entender a tragédia. Sófocles ou Eurípedes diriam que ninguém escapa de seu destino. Neste caso, estão errados. Teria sido possível evitar a tragédia se, desde o início, os atores tivessem agido de outra forma. A crise grega expõe duas visões antagônicas da realidade econômica e de como agir diante das dificuldades. É do choque entre essas duas visões que advém o sofrimento do povo grego. Entendê-las nos ajuda a investigar se realmente o destino era inevitável – ou se teria sido possível agir de modo diferente e evitar o desfecho trágico. Tomemos o primeiro lado do conflito, representado pelos credores. A figura símbolo é o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, um político sisudo que já escapou de uma tentativa de assassinato que o deixou paralítico. Sua mentalidade está profundamente marcada pela história alemã. Ao forçar a Alemanha a assumir dívidas da ordem de US$ 30 bilhões (em valores atualizados), o Tratado de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial, plantou a semente da segunda. Falido, o governo alemão se viu presa de discursos radicais que contribuíram para a ascensão do nazismo e para a catástrofe que se sucedeu. Evitar dívidas é, para Schäuble, não apenas uma questão de Justiça – mas uma política sensata para o futuro. A economia dos países deve viver de acordo com os próprios meios, não embriagada por crédito artificialmente barato. A responsabilidade fiscal dos governos é crítica, mais importante para o bem-estar da população do que políticas sociais financiadas à custa do endividamento. Assim funciona a cabeça do principal negociador alemão. Do outro lado do conflito está o ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis. Não poderia haver alguém mais diferente de Schäuble. É considerado um acadêmico brilhante, especialista em teoria dos jogos. Militante casado com a bela artista plástica Danae Stratou, raramente veste uma gravata, costuma se sentar no chão nas discussões e mantém a cabeça raspada, num visual de empreendedor do Vale do Silício. Ao final do primeiro encontro com Schäuble, este disse que os dois haviam “concordado em discordar”. Varoufakis respondeu que nem nisso concordavam. Depois das últimas eleições, ele parece ter saído dos protestos que ocupavam a praça Sintagma, onde fica o Parlamento grego, diretamente para o ministério do outro lado da rua. Seu partido, o Syriza,  foi eleito com uma plataforma contrária aos programas de austeridade que, de acordo com sua visão, contribuíram para o deseprego subir a 25% para o PIB cair 8% desde que a crise começou. Não dá para trazer mais sofrimento para a população grega que, diz ele, ja vive uma “crise humanitária”. Assim funciona a cabeça do principal negociador grego.

Quem tem razão? Analisemos os argumentos de cada um.

Desde que a crise começou em 2009, a Grécia já passou por oito planos de austeridade. Despesas do Estado foram cortadas. Aposentadorias e pensões foram reduzidas, e a idade de aposentadoria subiu. Décimo-terceiro e décimo-quarto salários acabaram para boa parte da população. Impostos foram criados e aumentados. O quadro de funcionários públicos diminuiu. Com tudo isso, o governo conseguiu melhorar suas contas. De um déficit público de 12,7% do PIB antes da crise, hoje apresenta um superávit de 1,5% e, de acordo com Varoufakis, poderá chegar aos 3,5% acertados com os credores em no máximo dois anos. Não é razoável afirmar que os gregos continuam a gastar mais do que podem ou a desperdiçar o dinheiro dos empréstimos. Ao contrário, o povo grego hoje paga o preço da austeridade implantada nos últimos cinco anos. Mas a dívida continua num patamar insustentável, em torno de 180% do PIB. Desde 2009, houve dois grandes pacotes de ajuda aos gregos, num total de 240 bilhões de euros, em ao menos cinco rodadas de negociação. Elas geraram um vaivém diplomático constante e uma sensação entre os credores de que os gregos eram renitentes em seus maus hábitos financeiros. Para eles, salvar a Grécia mais uma vez contribuiria para aumentar aquilo que os economistas chamam de “risco moral”. O constante resgate aos gregos, dizem, transmite aos demais devedores a sensação de que não é necessário ter disciplina fiscal, pois sempre haverá um pacote de ajuda. O risco maior está, portanto, em ampliar o endividamento. Não é uma preocupação infundada. Desde a crise de 2008, já houve injeções de capital de mais de US$ 10 trilhões de dólares em economias problemáticas. Isso amplia em muito o risco de crises da dívida como a grega. Na Europa, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália vivem situações parecidas.  O último a declarar ter uma “divída impagável” foi Porto Rico, ontem à noite. Fica difícil argumentar que a boa vontade dos credores não tenha aumentado a probabilidade de problemas semelhantes. Se a Grécia não tivesse se embriagado com crédito farto lá atrás, não estaria com tanta ressaca. Melhor, dizem, que a Grécia agora sirva de exemplo para que os demais países se emendem. Com negociadores mais flexíveis, teria sido possível encontrar um ponto médio entre essas visões. Mas nem o governo americano foi capaz de desatar o nó. Os dois lados parecem dispostos a arriscar tudo rumo ao desconhecido. Os fundamentalistas do “risco moral” continuam a afirmar: “Chega de ajuda!”. Os radicais de esquerda que estão no poder na Grécia continuam a insistir: “Chega de sofrimento!”. Inconciliáveis, conduziram o país, o euro e o projeto de União Europeia à beira do precipício. Estão prestes a dar o salto. Não se sabe se há rede de proteção lá embaixo.

Ambos têm razão – e daí deriva a tragédia.









Fonte: H. GUROVITZ

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