O Dragão baixa o trem de pouso

Ao apagar das luzes de um ano marcado por incertezas, consolidam-se perspectivas de um 2012 ainda mais complicado para a economia global. Nos últimos meses, enquanto as atenções andaram voltadas para a Europa, outro foco de preocupações ganhou vulto: a China. Isso não quer dizer que a locomotiva asiática tivesse deixado, em algum momento, de despertar questões e desconfianças acerca da viabilidade de manutenção do seu virtuoso ciclo de crescimento. Muito pelo contrário. A tese de que o país assumiria o posto de maior potência mundial em futuro próximo, no entanto, tornou-se fato consumado no inconsciente coletivo de agentes econômicos; virou uma realidade ex-ante. Embora os sinais provenientes do dragão não apontem uma derrocada iminente, eles transmitem a certeza de que seu ritmo de expansão declinará sensivelmente. Por quanto tempo a trajetória de arrefecimento perdurará e o quanto essa queda de atividade repercutirá no restante do planeta são perguntas que suscitam temores e especulações.
Desde 1996, a taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) chinês se manteve em 9% ao ano. No pico, o ritmo alcançou 14% a.a., pouco antes do crash global de 2008/2009. Pode-se dizer que o mundo se acostumou a esse padrão e a ele se adequou. Mais que isso, a partir de 2008, com o agravamento da crise financeira internacional e seus desdobramentos, a economia global ficou totalmente dependente do elevado desempenho da China para não desabar de vez. O apetite do dragão por matérias-primas vem impulsionando as exportações de outros emergentes, como Brasil e Austrália, tendo possibilitado a esses países uma rápida recuperação do baque que sucedeu à quebra do banco americano Lehman Brothers.

O poder de fogo e relevância chinesa ficam evidenciados no fato de o país ter sido capaz de adquirir mais de US$ 1,1 trilhão em bônus do Tesouro norte-americano. O montante representa cerca de 26% do total de títulos dos EUA em poder de estrangeiros. Há um consenso, inclusive nos Estados Unidos, de que, sem esse aporte, Tio Sam teria sido forçado a rever sua política de endividamento há muito tempo. A qualquer ameaça econômica que surja no planeta, as soluções vislumbradas contam sempre com a participação pró-ativa de Pequim. É o caso da Europa hoje, cujas autoridades buscam ansiosamente a ajuda chinesa para engordar os fundos de resgate a países e bancos em dificuldades.

É óbvio que a pujança econômica dos EUA, Europa e Japão, que sempre se traduziu em consumo e investimentos, foi o que, antes de qualquer fator, possibilitou à China implementar o seu modelo desenvolvimentista até 2008, quando esse padrão teve que ser revisto. Apesar de a recuperação do dito Primeiro Mundo interessar ao país, a equação para distribuição de riqueza no planeta, via globalização, já não funciona como há 20 anos. Daqui por diante, fica claro que, se a atual arquitetura econômica e financeira mundial não for reformulada, o conflito de interesses entre nações se agravará. Tudo leva a crer que mudanças substanciais nos paradigmas que têm regido esse arranjo são requisitos essenciais para uma retomada harmônica do crescimento econômico e do desenvolvimento humano, a nível planetário. O problema é que não há consenso algum sobre essas mudanças e nem sobre qualquer linha de ação nesse sentido, no âmbito supranacional. Diga-se de passagem, nem mesmo nos domínios internos de cada país ou bloco existe a certeza de como agir ante os imensos desafios globais que vão se avolumando.

Um dos sustentáculos do milagre chinês, paralelamente às exportações, vem sendo o alto nível de investimentos em projetos de infraestrutura. Notadamente após 2008, com o declínio nas vendas externas, o governo central apostou suas fichas no aporte em capital fixo e na expansão do crédito interno, para atenuar domesticamente os efeitos da crise internacional. Os recursos para essas obras têm sido levantado por governos locais, normalmente por meio da venda de terras. Se, porventura, os empreendedores estiverem sem dinheiro em caixa para a compra de terrenos, a engrenagem trava. Esse é o primeiro problema que desponta.

Conforme apurado pelo jornal Financial Times (FT), as vendas de terras na cidade de Guangzhou (que é uma ótima referência) despencaram esse ano. As previsões do governo municipal eram de 50 bilhões de iuans em vendas, o que superaria um pouco o total registrado em 2010. Nos primeiros nove meses de 2011, contudo, o município arrecadou somente 14 bilhões de iuans. Uma receita inferior implica em menor capacidade para se gastar em projetos grandiosos, o que, por sua vez, traduz-se em menor crescimento do PIB. O segundo complicador, que começa a comprometer a fórmula adotada pelo Partido Comunista, diz respeito ao relacionamento entre bancos e governos locais, que usam terras como garantias para a tomada de empréstimos. Caso o preço desses terrenos caia significantemente e os municípios, que já estão endividados, encontrem dificuldades para levantar mais dinheiro e continuar honrando suas dívidas, deduz-se que o sistema bancário incorrerá em perdas vultosas.

Edward Chancellor, em artigo publicado no FT, enfatiza que “a presente taxa de expansão do crédito na China excede a verificada nos EUA, nos anos que antecederam a quebra do Lehman Brothers. Uma simples freada nesse ritmo de expansão poderia impactar seriamente a economia chinesa.” No começo de dezembro, o Banco Popular da China (o BC chinês) demonstrou que o recuo da atividade e mesmo a possibilidade de um estrangulamento mais forte no crédito já preocupam as autoridades, ao reduzir em 0,5 ponto percentual o nível dos depósitos compulsórios exigido aos bancos, além de acenar com mais reduções. Os sinais realmente não são bons. Até a metade desse ano, por incrível que pareça, Pequim adotava medidas para conter a inflação e desacelerar o ritmo de crescimento. Àquela altura, era clara também a intenção do governo de esvaziar a bolha imobiliária. Como a história demonstra, no entanto, esse processo pode ser extremamente doloroso, dependendo, acima de tudo, de quão inflados estejam os preços.

O relevante Índice dos Gerentes de Compra (PMI, na sigla em inglês) afere a quantidade de produtos e serviços que estão sendo adquiridos por empresas. Ele é um apurado indicador do momento empresarial. Pois bem, os últimos PMI divulgados sugerem que a atividade industrial na China está diminuindo no ritmo mais acelerado em quase três anos. Para o banco sul-africano Standard Bank, a economia chinesa deverá crescer 7,5% no primeiro trimestre de 2012 (em termos anuais), o que já estaria bem aquém da média dos últimos quinze anos. A maior incorporadora do país – a China Vanke – relatou que suas vendas em novembro declinaram 36% em comparação com igual período de 2010. Vale lembrar que uma menor demanda por propriedades significa menos recursos para novos empreendimentos. Segundo o banco Credit Swiss, 80% das companhias chinesas que fornecem produtos e serviços a empresas incorporadoras estão reclamando de atrasos nos pagamentos.

Em se tratando de China, é sempre muito difícil fazer projeções. É de se estranhar, porém, que o governo tenha interferido nos mercados de câmbio no começo de dezembro, não para manter o renminbi depreciado contra o dólar (o que vinha sendo uma prática comum durante anos), mas para fortalecê-lo, evitando uma desvalorização mais pronunciada. A julgar pelos mercados acionários, contudo, a intervenção pode fazer sentido. O índice Hang Seng, da Bolsa de Hong Kong se desvalorizou 20,7% em dólares esse ano, o que reflete uma fuga de capitais.

Dezembro de 2011 trouxe a constatação de que os mecanismos que permitiram, até então, evitar, abrandar ou adiar, em diferentes graus, correções nos ciclos econômicos de alguns países e blocos começam a ratear. No contexto global, em vez de as nações mais afetadas em um primeiro instante se recuperarem enquanto os bastiões de resiliência amorteciam o choque inicial, a crise recessiva parece estar tomando outra dinâmica. A resistência concentrada principalmente nos países emergentes vai se exaurindo, até mesmo por causa da incapacidade de reação do mundo desenvolvido. Resta torcer para que janeiro traga, realmente, uma grande virada.


Fonte: JC

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