A
língua portuguesa é complexa, cheia de regras, exceções e, dependendo de como
um texto é escrito, possibilita várias interpretações. O acréscimo ou omissão
de um acento, vírgula ou a construção de uma concordância, adequada ou não,
podem provocar mudanças em uma sentença inteira. Imagine o que isso pode
acarretar na formulação de uma norma jurídica, ainda mais se tratando de tema
delicado como é a cobrança de impostos. Há tempos são debatidas as
interpretações para a apuração do Preço de Transferência, regra que estabelece
os limites fiscais para os preços praticados em operações com empresas ligadas
no exterior, sob a metodologia do PRL60 (Preço de Revenda menos Lucro). Em 27
de janeiro de 2000, foi editada a Lei n° 9.959, que alterou a legislação então
vigente para possibilitar a utilização do método PRL no cálculo dos preços de
transferência de produtos aplicados na produção de bens nacionais. Uma vez que
a forma de cálculo originalmente prevista na Lei n° 9.430/96 aplicava-se apenas
a produtos destinados à revenda (PRL20), foi preciso readequá-la para
possibilitar sua aplicação para os insumos importados, surgindo, então, o
PRL60. Foi aí que começou a confusão. Claramente há um equívoco gramatical no texto
legal trazido pela Lei n° 9.959, que torna impossível a aplicação literal da fórmula
de cálculo do PRL60. O legislador, ao tratar da margem de lucro de 60%,
estabeleceu que tal margem é calculada sobre o preço de revenda do produto
industrializado, após deduzidos os descontos concedidos, os tributos incidentes
na venda, as comissões pagas e do valor agregado no país. Em um primeiro momento, a interpretação
inicial do método de cálculo foi dada pela Instrução Normativa da Secretaria da
Receita Federal (IN SRF) nº 32/2001, que suprimiu apenas uma letra da Lei (o
“d” no trecho “do valor agregado”) para ajustar a concordância gramatical,
estabelecendo que a margem de 60% seria calculada sobre o preço de venda
“deduzidos os descontos, comissões, tributos e o valor agregado”. Assim, foi
corrigido o erro gramatical cometido e adotada uma solução interpretativa simples
e direta. Em novembro de 2002, porém, foi editada a IN SRF 243/2002, trazendo uma
nova metodologia para o cálculo. Apesar de manter a mesma linha de
interpretação do texto legal prevista na INSRF 32, extrapolou os limites da lei
ao estabelecer o que deveria ser entendido como “valor agregado”, acarretando
em um aumento significativo na base de cálculo do IRPJ (Imposto de Renda Pessoa
Jurídica) e CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) para a maioria dos
contribuintes. Surpreendente, contudo, é a tese adotada pela PGFN (Procuradoria
Geral da Fazenda Nacional) para defender a legalidade dessa IN. Sustenta que esta
traria uma interpretação mais favorável da lei e, dessa forma, o afastamento da
IN, com a consequente aplicação da metodologia legal, resultaria em um cálculo
dos preços de transferência ainda mais gravosos aos contribuintes. Trata-se de uma
situação inusitada, na qual, para defender a patente ilegalidade da conceituação
do “valor agregado” pela IN 243, após mais de dez anos da edição da lei,
adota-se uma leitura inovadora do texto legal. Não há dúvida de que a redação
da Lei 9.430 contém um erro, que torna impossível interpretá-la literalmente.
Também não há registro histórico sobre a intenção do legislador que forneça
indícios sobre a forma de cálculo imaginada originalmente, em que pese ser mais
fácil admitir um erro de digitação (acréscimo da letra “d”) do que supor a
supressão de uma alínea, o que seria um grave erro de técnica legislativa. É
fato, porém, que, diante das possíveis interpretações do texto legal, tanto a IN
SRF 32, quanto a IN SRF 243 – que representam a interpretação oficial da
Receita Federal do Brasil acerca do dispositivo legal – não estão alinhadas com
a interpretação defendida pela PGFN, o que torna insustentável a alegação de que
essa seria a “verdadeira” norma quista pelo legislador. É importante mencionar
que, em decisão recente, a 2ª Câmara da 2ª Turma do CARF (Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais) entendeu pela ilegalidade da IN 243 e
apontou as situações absurdas que as metodologias de cálculo trazidas por essa
instrução normativa e pela interpretação da PGFN trariam aos cálculos dos
preços de transferência, afastando ainda mais as regras brasileiras do
princípio do arm’s lenth, ou seja, de alcançar o valor da operação em condições
de livre comércio entre partes independentes. Desta forma, espera-se que a
decisão mencionada reverbere nas demais câmaras julgadoras e possa trazer de
volta ao rumo da justiça fiscal a jurisprudência daquela corte administrativa.
Fonte: JC
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