Os superpoderes dos juízes



Em que pese a defesa do projeto de novo CPC por eminentes deputados e professores via imprensa, não podemos deixar de rebater as críticas à nossa posição para reafirmar o caráter profundamente autoritário do texto até aqui apresentado à sociedade brasileira pela Comissão Especial da Câmara.

Em primeiro lugar, é preciso insistir na ideia de que os juízes serão realmente senhores absolutos da prova. Hoje, mesmo em matéria instrutória, cabe recurso de imediato se o juiz indefere uma perícia, se fixa honorários provisórios absurdos, se nomeia perito sem qualificação ou se não admite a exibição de documento relevante, bastando que se demonstre tratar-se de "decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação" (dessas decisões cabe agravo de instrumento). Tais possibilidades não existirão no novo CPC, como também não serão recorríveis as decisões que o juiz tomar em audiência (já que o atual agravo retido simplesmente desaparece com o projeto) e até decisões baseadas em regras novas (como a que proíbe a prova ilícita ou a que admite a prova emprestada) serão inatacáveis por recurso. E mais: o juiz também fica com o poder de inverter, segundo a sua vontade, a ordem da produção das provas.  É preciso dizer mais? Em segundo lugar, é necessário acentuar a circunstância de que o projeto de fato amplia o poder dos juízes para conceder medidas antecipatórias.  Bastará que o autor apresente ao juízo, em qualquer causa, um bom documento, para que o magistrado, à vista da não apresentação de um outro bom documento pelo réu, antecipe os efeitos da sentença de imediato. Hoje, o requisito do "perigo da demora" é uma barreira ao poder antecipatório, barreira que é simplesmente derrubada pelo projeto. Estaremos todos sujeitos a decisões imediatas, de difícil combate, de um único homem. Em terceiro, não podemos deixar de dizer com todas as letras que, segundo o projeto, já não existirão limites, nem disciplinas para a concessão de arresto, sequestro, busca e apreensão, arrolamento, caução, o que exporá cada um de nós, pessoas físicas e jurídicas, a agressões patrimoniais de toda sorte sem condicionamentos severos ou limitações para os juízes. Hoje, o arresto depende da existência de um cheque, uma promissória ou um contrato; no projeto apenas da interpretação judicial de um documento qualquer. O cumprimento de uma busca e a precisão depende de dois oficiais de justiça e de testemunhas, em caso de arrombamento; pelo novo CPC não depende de mais nada.  Além disso, faltará regulamentação para o arrolamento e a caução, o que empobrecerá o nosso processo civil.  Mas não é só: medidas cautelares poderão ser concedidas sem pedido da parte, segundo a exclusiva vontade do juiz e sem qualquer previsão legal. Em relação às normas abstratíssimas que os magistrados poderão aplicar na sentença, o que nos cabe relembrar é que "dignidade","razoabilidade"e"proporcionalidade" são princípios  constitucionais dirigidos ao Poder Legislativo, ao Executivo e ao STF, mas não a juízes de primeira instância que, com eles em mãos, poderão decidir o que quiserem ao arrepio do que diz a lei e ao arrepio da segurança jurídica a que todos nós temos o direito. E, finalmente, em quinto lugar, que ninguém se engane: o fato de o projeto submeter a uma decisão do relator a liberação da execução provisória não significa nada para descaracterizar o autoritarismo que denunciamos.  A questão é que para o relator impedir a execução provisória, ele terá de dar razão ao recorrente e tirá-la do juiz, o que significará um trabalho enorme e a necessidade de proferir uma decisão longa e bem fundamentada; já para liberar a execução, bastará uma singela decisão de sustentação da sentença "por seus próprios e jurídicos fundamentos", de duas ou três linhas.  Aliás, a apelação de instrumento que se cria é apenas mais um caminho para permitir que milhares de execuções provisórias tenham lugar no nosso futuro processo civil, em detrimento do direito ao duplo grau de jurisdição. Os vários deveres que o projeto impõe aos juízes – não os desconhecemos  como avanços – não compensarão os múltiplos retrocessos que experimentaremos e os perigos que representarão para a cidadania e para a democracia no Brasil.

Ives Gandra da Silva Martins é membro do Conselho Superior da Associação Comercial de São Paulo ( ACSP), professor emérito da Universidade Mackenzie e das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME e Superior de Guerra (ESG). Antônio Cláudio da Costa Machado é professor de Direito Processual Civil da USP.



Fonte: Diário do Comércio

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