Toda vez que ouço que a inflação é causada
pela indexação sinto um frio na barriga. Sobretudo quando há um desastre fiscal
em andamento, as autoridades não acham grave, e muita gente pensa em elevar o
gasto público. Mas foi isso o que disse o ex-ministro Bresser Pereira, outro
dia, no Roda Viva, diante do semblante cordato, e invariavelmente debochado, do
professor Belluzzo. Bresser dizia também que vinha conversando com um
parlamentar que tencionava propor uma lei vedando a indexação em relações
econômicas em que o poder público fosse parte. Pelo que entendi, isto seria uma
nova e poderosa ideia para prevenir ou combater a inflação. Lembrei que os dois
professores tinham sido figuras proeminentes em dois congelamentos de preços
fracassados no Brasil, em 1986 e 1987, trinta anos passados. Nada a estranhar. A
ideia de que a indexação causa a inflação é um exemplo admirável de uma frase
célebre do jornalista americano Henry Mencken, uma das favoritas do ex-ministro
Pedro Malan, segundo a qual “para cada problema complexo, há sempre uma solução
que é simples, elegante e errada”. Afinal, se a ideia fizesse algum sentido
esses dois congelamentos teriam funcionado, assim como os outros três, em 1988,
1990 e 1991. Na mente desse povo alternativo, há algo que Mario Henrique
Simonsen definiu certa vez como “um princípio de contra indução”, pelo qual uma
experiência que dá errado, em vez de atestar a morte de uma hipótese, resulta
em nova tentativa, até que a coisa funcione. Pois bem, é importante ter claras
as razões pelas quais é um erro dizer que a indexação causa a inflação, pois
esta é uma crença e muito perigosa nesse momento em particular. Primeiro, vamos
a uma definição mais precisa de indexação: trata-se de comportamento pelo qual
uma pessoa, física ou jurídica, fixa seus preços e salários desejados, ou
simplesmente manuseia grandezas monetárias, tendo em mente o poder de compra da
moeda. Não há muito mistério aqui. As pessoas, como regra, não confundem
valores nominais com valores reais, ou seja, não estão sujeitas a uma doença
que os economistas designam como “ilusão monetária”. Nos cursos de introdução à
economia, quando os professores explicam este conceito, os alunos sempre reagem
como se já soubessem disso desde sempre. Podem mesmo ter aprendido antes do
ensino médio, quando ganharam a primeira mesada. É este o momento em que terão
de descobrir por conta própria quantos picolés se compram com aquele
dinheirinho. Ninguém esquece esta descoberta, sobretudo se, no segundo mês, o
mesmo dinheiro não for suficiente para o picolé. Portanto, a indexação é o
comportamento pelo qual as pessoas demonstram que não possuem “ilusão
monetária”, e pelo qual elas sempre relacionarão as grandezas nominais a algum
índice que tenha a ver com o custo de vida, picolés ou dólares, pois o dinheiro
é apenas um pedaço de papel, seu valor é sempre relativo a alguma coisa. Como
imaginar que um comportamento tão inocente e natural possa ser a causa da
inflação? Não seria um despautério uma lei que nos obrigasse à ilusão
monetária? É claro que a indexação não causa a perda do poder de compra da
moeda, esteja a indexação escrita num contrato ou apenas intuitivamente na
mente das pessoas. Proibir a indexação é como congelar preços, é como proibir o
cálculo da inflação ou tentar impedir qualquer efeito que o conhecimento do
índice de inflação possa ter nas ações das pessoas. Desindexação, por sua vez,
é quando ninguém quer praticá-la, é o que se passa nos EUA, onde as pessoas
acham mais simples não pensar em cláusulas de correção monetária, ou em contas
de poder de compra. Desindexação é ausência de restrições à indexação, coisa
que ocorre em países onde as pessoas confiam que o governo não vai lhes
enganar. A ideia de criar embaraços à indexação é, na verdade, uma forma
insidiosa de fazer um congelamento pela metade, ou de forma seletiva. Mas, a
despeito da nossa longa experiência com esse tipo de expediente, Dilma Rousseff
foi capaz de nos impor um choque heterodoxo em câmara lenta ao fazer um
semicongelamento (ou “desindexação parcial”) dos preços públicos a partir de 2010
e com mais vigor em 2012. Com este truque velho, amansou artificialmente a
inflação e obteve a sua reeleição, após a qual soltou os preços. É
impressionante que a velha fórmula populista, de que se valeu o governo em
1986, trinta anos atrás, ainda pudesse funcionar. Talvez tenha sido a passagem
do tempo, que fez as pessoas esquecerem como é ser enganado pelo governo dessa
forma tosca e primária. No escurinho de seu gabinete, a presidente deve rir um
bocado, juntamente com seus conselheiros econômicos, daqueles que diziam que as
pessoas logo perceberiam a existência de “inconsistência temporal” em suas
políticas. Mas o erro está em pensar que a malandragem, esta e todas as outras,
vão ficar impunes. O preço de iludir as pessoas é um dano irreparável na credibilidade,
o que parece uma descrição bem amena para o fato de que nenhuma autoridade de
primeiro escalão, em nossos dias, tem coragem para sair para jantar fora num
restaurante comum. Mas o fato é que a inflação está descontrolada. A marca de
10% é muito perigosa, pois leva naturalmente a um encolhimento da
“periodicidade” com que se recontratam preços, aumenta desproporcionalmente a
variância das expectativas e torna as coisas muito mais instáveis. Mesmo diante
da maior recessão da história do Brasil, a inflação não cede como deveria. Fora
do mundo da fantasia dos heterodoxos e alternativos, os economistas sabem que a
inflação tem a ver com expectativas. As pessoas possuem uma compreensão muito
sofisticada das coisas da economia, sabem fazer conta e não confiam em Dilma
Rousseff. Ao estabelecer quantias em dinheiro, para seus preços, salários,
planos e desejos, as pessoas olham para trás e para os lados, mas
principalmente para o futuro. E está me parecendo que o futuro voltou para o
mesmo lugar em que estava no fim de 1987, depois do colapso do Plano Bresser e
a ascensão da política econômica que passou a ser conhecida como o “feijão com
arroz”. O novo ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega definiu três prioridades,
duas das quais eram “controlar a inflação em níveis razoáveis para a situação,
de 15% ao mês (sic), e convencer a sociedade de que não haveria congelamento”. Está
me parecendo que voltamos exatamente a esse ponto, porém com um novo feijão com
arroz, onde os 15% podem valer para a inflação anual e para o desemprego, a
depender dos acontecimentos. Na essência, é como se a presidente tivesse outras
preocupações, e não quisesse se aborrecer mais com os temas da economia. Ou
como se tivesse desistido da economia.
Fonte:
G. Franco
Nenhum comentário:
Postar um comentário