ELIO GASPARI
A reforma política
nunca esteve na agenda da rua, ela é uma ideia do PT, que quer mudar de assunto.
A
proposta da doutora Dilma de Constituinte exclusiva para decidir uma reforma
política tem cheiro de tunga no ronco das ruas. Quando ela se propõe a tratar
das tarifas de transporte públicos com um “Plano Nacional de Mobilidade
Urbana”, fala no dialeto de comissários e burocratas que empulham a rua com
eventos e iniciativas “estratégicas”. (A menos que essa parolagem signifique
apenas “passeatas”.) Falando em reforma política, fala de nada. Ganha uma
viagem a Havana quem souber o que é isso. Ganha um mês em Pyongiang quem souber
como um plebiscito pode legitimar uma discussão que não se sabe como começa nem
como termina. Hoje, há apenas uma insistente proposta de reforma do sistema
eleitoral, vinda do PT, sucessivamente rejeitada pelo Congresso. São dois os
seus tendões. Um é o financiamento público das campanhas. Em tese, nenhum
dinheiro privado iria para os candidatos. Só o público, seu, nosso. A maior
fatia iria para o PT. Quem acredita que esse sistema acabaria com os caixas
dois tem motivo para ficar feliz. Para quem não acredita, lá vem tunga. Seria
mais lógico proibir as doações de empresas. O Congresso pode decidir que quem
quiser dar dinheiro a candidatos deverá tirá-lo do próprio bolso, e não mais
das empresas que buscam-no de volta nos preços de seus produtos. O segundo
tendão é a criação do voto de lista. Hoje o voto de um cidadão em Delfim Netto
vai para a cumbuca do partido e acaba elegendo Michel Temer. Tiririca teve 1,3
milhão de votos e alavancou a eleição de três deputados, um deles petista, com
apenas 93 mil votos. Pelo sonho do comissariado, os partidos organizariam
listas e os votos que a sigla recebesse seriam entregues aos candidatos, na
ordem em que foram arrolados pelos mandarins. Em poucas palavras: os eleitores
perdem o direito de escolher o candidato em quem querem votar e as cúpulas
partidárias definem a composição das bancadas. (O sujeito que votou em Delfim
elegeu Temer, mas em Delfim votou.) Uma proposta sensata de emenda
constitucional veio exatamente de Michel Temer: cada Estado torna-se um
distritão e são eleitos os mais votados, independentemente do partido. Tiririca
elege-se, mas não carrega ninguém consigo. O que o comissariado quer é
contornar a exigência de três quintos do Congresso (357 votos em 594)
necessários para reformar a Carta. Numa Constituinte, as mudanças passariam por
maioria absoluta (298 votos). Esse truque some com 59 votos, favorecendo quem?
A base governista. Todas as Constituintes brasileiras derivaram de um
rompimento da ordem institucional. Em 1823, com a Independência. Em 1891, pela
proclamação da República. Em 1932, pela Revolução de 30. Em 1946, pelo fim do
Estado Novo. Em 1988, pelo colapso da ditadura. Hoje, a ordem institucional vai
bem, obrigado. O que a rua contesta é a blindagem da corrupção eleitoral e
administrativa. Disso o comissariado não quer falar. Há um século o historiador
Capistrano de Abreu propôs a mais sucinta Constituição para Pindorama: “Artigo
1º: Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Artigo 2º: Revogam-se as
disposições em contrário.” Na hora em que a rua perdeu a vergonha de gritar, a
doutora diz que o problema e sua solução estão noutro lugar.
Fonte: O Globo -Elio Gaspari é jornalista
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