O saco explodiu.

A semana mal havia começado na madrugada de segunda-feira e as redes sociais repercutiam a fala do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, em que mais uma vez ele diz não haver "alívio nem trégua no combate à inflação", dividindo espaço com as notas sobre novos protestos contra as tarifas de ônibus horas depois em São Paulo, no Rio, em Brasília, Belo Horizonte. No país, enfim. Os assuntos estão interrelacionados, ainda que os protestos tenham se iniciado sob a bandeira ou a liderança do Movimento Passe Livre, com reivindicações sob o pretexto do alto custo e do mau serviço dos transportes coletivos. Era mais que isso, tal como com a inflação, que reflete aumentos de preços, ora do tomate, ora da gasolina, mas sempre como sequela de um padrão ruim de política econômica e de conflitos mal resolvidos de partilha da renda. A coalizão difusa de jovens, nascida em Florianópolis anos atrás, foi levada a outras capitais, sobretudo em São Paulo e no Rio, com mobilizações pelo Facebook e o molho de grupos de extrema-esquerda, sem líderes explícitos e contra os partidos formais — apanhados de surpresa, todos, do PT ao PSDB. E tomou proporções inusitadas. A inflação é parte da febre, à falta de causas explícitas, como o sintoma de desarranjos, que brotam da economia, e de frustração de expectativas, tornadas sociais, ao fincar raízes e se desdobrar em distorções multifacetadas. O mal-estar está no mercado financeiro, na insegurança empresarial, na insatisfação difusa, especialmente dos jovens, acumula-se a outros conflitos, e um dia chega às ruas. Como definiu o escritor Ignácio de Loyola Brandão, "os protestos não são contra os 20 centavos", o aumento da passagem de ônibus na cidade de São Paulo, elevada pelo prefeito Fernando Haddad, do PT, depois de um ano e meio sem correção, de R$ 3,00 para R$ 3,20, numa decisão acompanhada pelo governador Geraldo Alckmin, do PSDB, com o reajuste das passagens de trem e metrô, administrados pelo estado. Os protestos, ele reflete, "são contra a vida miserável, expressam o saco cheio, e é apenas um rastilho, o bicho ainda vai pegar".
Não é, mas sempre foi
As analogias com a economia parecem visíveis, quando o BC reacende o forno dos juros e a presidente Dilma Rousseff diz que a inflação esteve, está e estará sob controle. Não é só a carestia o problema, mas a impaciência com as transformações que demoram a acontecer em meio à crise externa e a um horizonte de venturas que se distancia. O que esperar, por exemplo, de um cenário de moeda desvalorizada, depois de oito anos com o governo Lula encucando que ordinário era o dólar, o real forte era o futuro, não devíamos mais nada ao FMI, aliás, tornáramos credor da antiga besta fera da dívida externa? A percepção de moeda depreciada é a sua contrapartida, equivocada ou não, de arrocho salarial. Não é bem assim, mas sempre foi assim.
Os partidos humilhados
A esquerda se equivocou ao achar que a insatisfação com os rumos da economia seria apenas da banca e dos investidores estrangeiros, devido à queda dos juros. Podia ser mais com o sentimento de que o país perdeu tempo com questões acessórias. Não é o caso dos juros, não obstante, tal como a inflação, eles sejam, de fato, sintomas de problemas estruturais nunca enfrentados, como a expansão do gasto público sem compensação equivalente, o estado paquidérmico, inepto, lideranças políticas voltadas para o próprio umbigo, e por aí vai. A oposição também avaliou mal tais problemas, supondo que seria o estuário dos desprazeres sociais. Os protestos, que começaram dos jovens, tendem a ser de muitos mais, desautorizando a representação de partidos, como o ministro Aloizio Mercadante intuiu ao admitir, demonstrando uma maturidade rara entre os políticos, que o PT não é "cadeia de transmissão" do animo social. No ato de sexta-feira, em São Paulo, bandeiras de partidos foram rasgadas, inclusive do PT.
Os limites esgarçados
O movimento das ruas induz a dois tipos de reflexão: uma delas é a de desaprovação, devido ao vandalismo que tem acompanhado, com mais ou menos intensidade, os protestos; outra é a de sentir que há algo doentio na sociedade e entender as suas causas. Não há só uma. Certo é que eles transbordaram os instrumentos de representação e, por mais que os protestos sejam justos, há limites intransponíveis no Estado de Direito, como a inviolabilidade do Congresso Nacional. Os manifestantes esgarçaram o direito de protesto com a invasão do Congresso. A desocupação pacífica e incondicional é o mínimo que se espera, já que conseguiram o máximo: humilhar os políticos — todos, governistas e oposicionistas. A ressaca desse ato será dolorida, só não pode ser imprevisível. Nem faltar maturidade a quem deveria ter cuidado antes para as coisas não chegarem ao ponto em que chegaram.
Insatisfação é global
O que vai ser depende de bom senso dos governantes, no plural, já que a responsabilidade é geral, e dos estudantes, parcela principal entre os manifestantes. Os excessos terão de ser coibidos, não há jeito, mas não há que buscar responsáveis em meio às águas turvas. Com atraso, o país mimetiza a insatisfação de outros centros tão diferentes entre si, do estado policial da China, onde não passa semana sem protestos de rua, à Europa hipercivilizada, temerosa de retroceder um século de avanços sociais. O cadinho que movimenta a sociedade é econômico, onde falta segurança sobre o dia seguinte, e também é do senso de setores da sociedade de participar de decisões sobre suas vidas, se quem deveria fazê-lo se mostrou inapto. Entender as transformações que detonam tais anseios e medos é mais producente que buscar o rabo do demônio nos movimentos sociais.



Fonte: JC

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