Com
a presidente Dilma Rousseff tendendo a se reeleger, a se crer no último
Datafolha, em que ela ampliou a intenção de voto de 42% na prévia de outubro para
47%, fechando a fatura em primeiro turno, fica sem sentido a relutância do
governo em encarar, sem sofismas, o problema fiscal– principal causa da
desconfiança que acomete a economia, ainda que se possam questionar as razões
dos temores. O fato é que nem o governo desconhece o problema, ou não estaria a
jurar compromisso com a disciplina fiscal nem a torcer, e não é de hoje, o
resultado orçamentário do setor público para entregar, ao menos no papel, um
superávit primário que satisfaça as demandas dos investidores do papelório do
Tesouro e a avaliação das agências de rating, que puseram em bloco a nota de
crédito do país no índex. Há um descompasso flagrante entre a avaliação dos mercados
e a do eleitor; entre a prioridade da política econômica e os resultados; entre
meta fiscal anunciada e realizada, distorcida mais pelo que o governo promete
entregar de economia do que gasta e não consegue, que pela profissão de fé na
austeridade do mercado e das agências. Afinal, de onde veio a meta de superávit
primário de 3,1% do PIB, um compromisso de ficção repetido anos a fio na lei
orçamentária? A propósito, por que mesmo existe essa coisa que nem superávit é?
Deficit é o resultado histórico da execução fiscal no país, também chamado de
“deficit nominal”, como se isso dissesse algo sobre a eficácia do gasto público
para o crescimento e o bem-estar social. Do modo como se faz o orçamento, com
parte da receita tributária capturada por grupos de pressão e o grosso do gasto
com destinação compulsória em lei e na Constituição, ninguém sabe avaliar o
custo-benefício das políticas públicas, dos órgãos e funcionários que as
executam, dos governos que as administram e dos parlamentares que as aprovam e
fiscalizam. A Lei dos Meios, como diziam os antigos, se tornou uma barafunda
que subverteu a noção das prioridades. Escreva-se no Google a expressão
“superavit primário” e o sistema despeja 782 mil registros. Repita-se o
processo com “crescimento econômico” e surgem 536 mil resultados. O que é
acessório para a política econômica tem 46% mais registros do que o principal —
o crescimento da economia. Absolutamente, isso não é normal.
História longe do final
O
histórico da administração das contas públicas é uma sucessão de ajustes
inacabados, boa parte deles do último governo militar como resultado dos
acordos de renegociação de dívida externa com o FMI. A prioridade era a
necessidade de financiamento do setor público e de medidas para monitorá-lo.
Surge, assim, o superavit operacional, descontando os efeitos do câmbio e
correção monetária, com os quais o deficit nominal chegou a 85% do PIB (em
1989). Inviável. Deficits dessa grandeza criavam ambiente favorável à moratória
da dívida, o que não evitou que a externa fosse ao pau por duas vezes. O
superavit primário aprimorou o antigo conceito, fixando-se como a economia
orçamentária para abater parte dos juros e consolidar uma trajetória cadente da
dívida como proporção do PIB, além de ajudar o controle da inflação, ao conter
a demanda agregada.
Dilma tropeçou na meta
Dos
fins originais, a solvência fiscal e externa foi resolvida no governo FHC e
reforçada com Lula, apesar de o déficit orçamentário nunca ter sido zerado.
Restaram ao superávit primário duas missões: desinflar gradualmente a dívida pública
líquida (que abate créditos do Tesouro, como repasses aos BNDES e títulos na
carteira do Banco Central) em relação ao PIB e complementar a ação da Selic. Nada
muito difícil, mas o governo Dilma se engasgou, ao insistir com metas
irrealistas de superavit primário, isso com o gasto real crescendo o triplo da
receita. Depois, ampliou os descontos da meta relativos a investimentos, enfiou
desonerações tributárias no bolo, e apelou a grosserias contábeis (tipo o
Tesouro repassar títulos à banca federal e se creditar dos dividendos assim
gerados). No fim, desacreditou-se no mercado e agências de risco, e atraiu a
atenção para a dívida bruta de 59% do PIB (contra 35% da líquida).
Para blindar a transição
O
melhor por agora é tirar o Tesouro de cena, mandar ao lixo todas as regras
fiscais perfunctórias e assumir a manutenção da dívida em 60% do PIB em 2014
como compromisso único. Para isso, basta 1,8% do PIB de superávit primário, sem
descontos e contabilidade criativa – com PIB de 2,5% e o custo real da dívida
de 5,5%. Parece fácil, mas é complexo. Só que há pouca margem para uma transição
controlada da economia até 2015, e reduzir o gap entre as percepções do mercado
e as possibilidades do governo. E nem isso é garantido.
Cenários de 2014 a 2015
Dois
cenários tomam forma no horizonte. Um está nítido: o desgaste do superavit
primário fornido com receitas não recorrentes, como os refinanciamentos de
dívida tributária e bônus de concessões. Não é para isso que há o tal
“superavit”. Outro cenário transita ao lado das pesquisas eleitorais,
refletindo as percepções de mercado sobre um eventual segundo governo Dilma,
sobretudo se ela não aproveitar a reforma ministerial próxima para mandar sinais
fortes. Juros de mercado e, sobretudo, o câmbio, cujo viés é de queda, vão
antecipar o cenário de 2015. É por isso que gente próxima a Dilma, como o
ex-ministro Delfim Netto e Lula, a aconselha a cravar uma meta seca de economia
fiscal e vetar tudo que possa ameaçá-la. A partir de certo tempo, conforme o
status de Dilma nas pesquisas, as atenções se voltarão para a governabilidade depois
de 2015. Se a política econômica não inspirar confiança até lá, o empresariado
e os investidores ficarão indóceis, apesar das oportunidades.
Fonte: JC
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